A crise de confiança do setor elétrico é pior que a crise energética

Diogo Mac Cord de Faria, Sócio da LMDM e coordenador do MBA do Setor Elétrico da FGV

Dizem que confiança é algo que leva anos para se construir e segundos para se destruir. No caso do setor elétrico, podemos dizer que o esforço está sendo grande para tentar transformar um segmento que, há bem pouco tempo, era considerado o mais estável do país.

Para explicar o que acontece, precisamos primeiro diferenciar os setores de infraestrutura dos demais setores da economia. Energia elétrica, saneamento básico, rodovias e outras concessões públicas são chamados de setores regulados, pois a “obrigação” pela prestação do serviço seria do Estado. Como este concedeu à iniciativa privada estes serviços, é obrigado a verificar se eles estão ou não sendo prestados da melhor forma possível, e se a tarifa cobrada do consumidor é a tarifa considerada “justa”, já que a característica econômica destes serviços é a de monopólio natural.

Bem, feito este esclarecimento, podemos dizer que o investidor precisa ter regras bastante claras quando inicia um investimento relevante, como é necessário nestes segmentos de infraestrutura, para garantir um retorno adequado ao longo dos 30 anos (em média) de uma concessão como esta. Estas regras garantem a qualidade, a segurança e a universalização destes serviços públicos. Usando mais uma frase popular, “o combinado não sai caro”. Então, definir estas regras com antecedência é bom para os dois lados: o governo, que tem a obrigação de oferecer o serviço público, deixa claro para o investidor o que ele precisará fazer para, em seu lugar, garantir o fornecimento com qualidade, de forma a atender a todos os potenciais consumidores. Do lado do investidor, conhecer as regras com antecedência ajuda a planejar o negócio, e a julgar se vale ou não a pena prestar aquele serviço naquelas condições. Afinal, 30 anos é muito tempo.

Até 2011 tudo caminhava razoavelmente bem no setor elétrico. Enquanto outros setores careciam de transparência e de decisões técnicas, a ANEEL organizava audiências públicas, disponibilizava em seu site na internet as notas técnicas que balizavam suas decisões e transmitia ao vivo suas reuniões de diretoria. Aliás, ela ainda faz tudo isso. O problema começou quando o governo federal resolveu participar, digamos, mais ativamente do processo regulatório.

Aqui vale mais um esclarecimento: uma Agência Reguladora, apesar de ser normalmente confundida como um órgão do Governo, é na verdade um órgão de Estado. Isso quer dizer que suas decisões devem equilibrar, em igual proporção, os interesses do poder concedente (a União, no caso do setor elétrico), das concessionárias (os investidores, portanto) e dos consumidores (atendidos pelo serviço concedido). Estas três pontas são difíceis de serem equilibradas, pois por vezes possuem interesses conflitantes (exemplo: preço da tarifa cobrada), e aí entra a importância das decisões serem técnicas, e tomadas pelo interesse do Estado – e não do Governo.

O Governo, entretanto, incomodado com este “excesso de técnica” da ANEEL (ou seria excesso de independência?), resolveu interferir. No dia 11 de setembro de 2012 (não é preciso dizer que os investidores adoram fazer comparações com esta data), uma coletiva de imprensa anunciou as regras que seriam usadas para a tão aguardada “renovação das concessões de geração e transmissão de energia”. Com muito alarde, foi prometida uma redução de 20% nas tarifas de energia elétrica. A princípio isso seria muito bem-vindo. Afinal, o Brasil tem uma das tarifas de energia mais caras do mundo. O problema foi como o processo foi conduzido, e quando a redução foi aplicada.

Em primeiro lugar, nenhuma concessionária e nenhum consumidor foram chamados para discutir a renovação. Claro, esta é uma decisão do concedente (União). Mas será que eles são tão auto-suficientes a ponto de não precisarem ouvir a opinião de mais ninguém? A intempestividade também foi marcante neste processo. Afinal, algumas usinas já estavam com seus contratos vencidos – sem que as regras da renovação estivessem definidas. Há 30 anos se sabia que estes contratos iriam expirar um dia, mas deixou-se tudo para a última hora – ficando tão “urgente” a discussão, que uma Medida Provisória, a MPv 579, precisou ser editada para definir as novas regras.

Bem, deficiências processuais à parte, a questão é que os valores de indenização vieram coerentes para as transmissoras de energia, que optaram pela renovação das concessões. Afinal, esta metodologia de indenização já havia sido definida pela ANEEL há muitos anos (não para este fim, é verdade) mas já era conhecida dos concessionários, que aceitaram as condições (ressalva-se que o valor pela operação das linhas não foi bem o desejado, mas isso já é outra história). Já para o segmento de geração, o papo foi outro. Não havia metodologia definida, e o que foi proposto (ou melhor, imposto) não agradou ao investidor. Resultado: apenas as geradoras do grupo Eletrobras, controladas pelo próprio governo, aceitaram a regra – mesmo que isso tenha representado o maior prejuízo contábil da história da empresa, deixando os minoritários de cabelo em pé. Daquelas usinas que optaram por não renovar (não só pelo valor da indenização, mas principalmente pelo valor oferecido pelo governo como remuneração pela operação da usina), apenas uma já foi relicitada pelo governo. Talvez não por coincidência, o único interessado que apareceu foi Furnas – uma subsidiária da Eletrobras.

Isso, por si só, deveria causar preocupação – mas é só o começo do problema. Como aconteceria com qualquer produto, uma redução de 20% no preço tem um efeito imediato: o aumento da demanda. Somado ainda com outros programas do governo (cartão “minha casa melhor”, por exemplo, que financiava eletrodomésticos novos à população), o consumo explodiu – mas a oferta não acompanhou. Para piorar, as chuvas não vieram (o que, diga-se de passagem, já indicavam os estudos climáticos na época em que foram anunciadas as medidas de redução de tarifa, ou seja, não deveria ter sido uma grande surpresa). Resultado: com a demanda aumentando e a oferta estagnada, o governo precisou apelar para as térmicas, com custo de geração mais de dez vezes superior às hidrelétricas.

Não é preciso ser um grande estudioso do setor elétrico para perceber que as contas não fecham – e a diferença é grande. Estima-se aumentos anuais no preço da energia elétrica de, pelo menos, 15% até 2019 para pagar esta conta. Tudo pelo atropelo do processo. O pior (se é que dá para piorar) é que as chuvas realmente não vieram, e sem nenhuma sinalização do governo para que a população reduza o consumo de energia, os reservatório se aproximam cada vez mais de seu nível mínimo, o que levaria o sistema a um colapso.

A confiança dos investidores no setor elétrico está abalada. Isso é muito ruim para um país que precisa de fortes investimentos em infraestrutura, e é agravado pelo fato do setor elétrico ser a referência entre os setores regulados. Precisamos retomar esta confiança, precisamos de mais técnicos e menos políticos, precisamos de mais discussões e menos imposições. Ninguém é dono absoluto da verdade e, para terminar com mais um bordão popular, o barato – mais uma vez no Brasil – saiu caro. Muito caro.

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