O setor elétrico já entendeu que o momento pelo qual passamos não é fruto da escassez hídrica. Todo mundo – inclusive o ministro Eduardo Braga – já entendeu que o jabuti de mais de 150 bilhões de prejuízo acumulado no setor elétrico nos últimos 2 anos foi fruto de erros de decisão, além de muito descaso. Pois bem, é chegada a hora de olhar no retrovisor, reconhecer o erro, formatar um plano de trabalho, ajustar a bússola e rumar para o Norte. Mas afinal, o que quebrou a bússola que funcionava bem? Fácil: a falta de planejamento. Deixar para última hora a discussão dos critérios de renovação das concessões de geração e de transmissão foi um erro. Repetir o erro com a distribuição foi burrice. Ninguém é dono da verdade, e regras precisam ser discutidas. Os impactos precisam ser analisados sob a ótica da “causa e efeito”.
Por exemplo: o ministro Braga, no Enase da semana passada, disse que precisamos de mais térmicas na base. Ótimo! Mas e o gás? Virá de onde? Até a Petrobras quer vender seu parque térmico sem dar garantia de fornecimento! Afinal, de que adianta uma usina sem gás? Braga também fala que precisamos reduzir o custo da energia. Outra bola dentro! Mas sem debater com os estados uma redução do ICMS, que pode ultrapassar os 40% da tarifa (já que seu cálculo é “por dentro”), quem vai pagar essa redução? As já combalidas concessionárias? Simples assim: não há discussão séria de redução tarifária sem se falar em redução de impostos e encargos. A tarifa aumentou 80% entre 2014 e 2015! A arrecadação do ICMS acompanhou esta evolução. Isso significa que os estados poderiam abrir mão de um percentual do imposto sem comprometer seu orçamento, pois em valor absoluto a arrecadação permaneceria a mesma.
É calamitoso ainda o argumento de alguns de que a microgeração solar distribuída será a salvadora da pátria. Por esta teoria, a microgeração próxima dos centros de carga, além de ser uma fonte limpa, aliviará a geração centralizada, reduzindo a necessidade de linhas de transmissão, perdas, etc – principalmente se esta microgeração estiver acompanhada de sistemas de baterias residenciais, como o anunciado pela Tesla. Sob o ponto de vista do sistema, faz todo o sentido e o setor deve, sim, caminhar para esta fonte! O problema é que este sistema é tão inovador que compromete o próprio conceito de monopólio natural das distribuidoras. Cada consumidor que fizer este investimento reduzirá a receita da distribuidora até a próxima revisão tarifária, quando a receita “a menor” será rateada por todos os demais consumidores dali para frente. De acordo com a análise de impacto regulatório publicada pela ANEEL na AP 026/2015, as receitas das distribuidoras reduziriam de 0,23% a 2,30% em 10 anos. Na percepção da Agência “haveria um pequeno aumento na tarifa de todos os consumidores de baixa tensão, inferior a 1% dentro do horizonte de estudo. Já para as distribuidoras, a redução de receita percebida também pode ser considerada não representativa”. Assim, das duas, uma: ou a microgeração não será a salvadora da pátria, ou o impacto das distribuidoras será muito maior do que o previsto (principalmente com todos os benefícios fiscais atualmente em discussão, mais um financiamento subsidiado dos aparelhos, a adoção de bateriais e o estímulo a grandes consumidores comerciais pela adoção desta fonte). Mais uma vez, parece que deixarão o problema aparecer para pensarem em uma solução. Sempre o ex-post em detrimento do ex-ante.
E as usinas não renovadas, que serão relicitadas em setembro? Mais uma catástrofe anunciada. Imagine o seguinte: a Receita Anual de Geração (RAG) de uma destas usinas é de R$ 1 milhão. Aí, vem dois licitantes, e o ganhador oferece R$ 800 mil. Até aí, tudo certo! O problema é que o contrato prevê revisões tarifárias a cada 5 anos, valendo-se da mesma metodologia que calculou o R$ 1 milhão inicial. Assim, a eficiência do leilão será revertida em modicidade apenas por 5 anos! Nos demais, volta a RAG “cheia”. Qual o sentido disso? É a união de duas metodologias incompatíveis (a regulação tarifária discricionária e a contratual). Esta confusão de modelos tem acontecido em concessões de saneamento, dando muito (muito!!) trabalho às agências reguladoras estaduais para resolver o imbróglio depois. Não seria mais adequado oferecer um valor fixo durante todo o contrato? Tanto faz se é um valor por MWh (atribuindo o risco hidrológico ao concessionário) ou por RAG (atribuindo o risco ao consumidor). O importante é ser coerente.
A coerência, aliás, é algo que parece ter nos abandonado há algum tempo. Até as boas notícias são más notícias. Quando a presidente Dilma encontrou os Chineses no ano passado, foram assinados diversos acordos – entre eles uma cooperação entre a Eletrobras e Três Gargantas para participação no leilão da usina de Tapajós (8 GW). Este acordo foi ratificado neste mês, demonstrando que o governo quer, sim, a China como parceira. Mas espere aí: no setor elétrico existem três partes interessadas: o poder concedente, o investidor e o consumidor. Afinal, a dona Dilma é poder concedente ou investidora? Se um investidor americano vê o poder concedente brasileiro assinando um acordo com uma empresa Chinesa para, juntos, concorrerem em um leilão organizado pelo próprio poder concedente, fica imaginando por que ele perderia seu tempo participando de uma concorrência de cartas marcadas. O conflito de interesses entre governo e Eletrobras é tão grande que a empresa foi condenada nesta semana pela CVM exatamente por ter renovado os contratos de concessão em condições deveras desfavoráveis – demonstrando que a empresa está disposta a entrar (e ganhar!) na concorrência que for, mesmo que isso represente prejuízo (no caso, R$ 16 bilhões nos últimos 3 anos). Então, o acordo Brasil-China não é boa notícia para ninguém (nem mesmo para a China, se o negócio der prejuízo), pois espanta investidores interessados em negócios de longo prazo em nosso país.
Enfim, são tantos os problemas que me coloco a pensar: será que realmente queremos evitar mais R$150 bilhões de prejuízo? Ou será que esse jabuti vai continuar em cima do poste pelos próximos anos? Como sabemos, o jabuti não subiu sozinho. Mas o que preocupa é que, estando lá por quase três anos, tem alguém levando comida…